30 novembro 2008

do que me surge...


Quando escrevo, surge em mim
uma fala solta, autônoma, independente,
como se nem fosse minha.
Que fala à partir de mim
sobre coisas que nem eu sei,
e que muitas vezes nem quero saber.
São impotências, dores que não posso suportar
e coisas nas quais não quero pensar.
E acabo por falar do que me surge
mas que não entendo.
Quando escrevo,
meus dedos sabem mais de mim que eu mesma.
E emprestando minha dor,
me devolvem a tradução da minha angústia,
em palavras.
São frases, idéias e dúvidas
tomando vida e dando sentido
à confusos sentimentos.
Ao escrever vou me criando,
me descobrindo, me inventando.
Nada me surpreende mais
que minha própria capacidade de surpreender.



Por Sophia Compeagá

23 novembro 2008

da finitude...


Quis escrever um novo post sobre o mesmo assunto que o anterior, mas desta vez com minhas próprias palavras porque este é um tema que, de algum tempo pra cá, tem me intrigado muito.

A vida tem me empurrado para conclusões estranhas sobre ela mesma. Tenho me surpreendido muito com as contradições a que se submetem nossas idéias para alcançar algum amadurecimento.
Tantas vezes temos que rever conceitos, desdizer ditos, mudar pontos de vista… é como se o aprendizado exigisse que experimentássemos vários pontos de vista na ânsia de encontrar uma verdade absoluta, mas no final descobríssemos que a verdade é a soma de todas as coisas.
Isso é arriscado porque tendemos a não nos envolver com afirmações e a duvidar de tudo.

E o tema do post anterior, eternidade, mexe mesmo comigo me fazendo rever antigos conceitos sobre vida e morte e sobre o valor das coisas.
Concordo com Clarice quando associa a eternidade com o sabor do chiclete que se acaba. Clarice sempre questiona, indiretamente, o que é realmente felicidade.
E no meu ver, todas estas coisas estão interligadas.

Acredito mesmo que a finitude das coisas é o que verdadeiramente lhes atribue valor. E a felicidade é um estado passageiro.
Somos incompletos, insatisfeitos e dinâmicos, e é esta insatisfação que nos mobiliza.

A vida é essa montanha russa, que ora nos coloca lá em cima gozando da maior felicidade, e ora nos põe pra baixo e nos faz querer desesperadamente subir novamente, e para isso, empreender esforços, produzir, mobilizar-nos, até que novamente se alcance o topo...
Clarice se pergunta "... queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?"

Nossa maior constatação de incompletude é o próprio amor. Ama-se justamente porque é impossível ser feliz por si só. Amar é buscar no outro a resposta da própria angústia.
E um bom relacionamento é aquele desobrigado. Onde não haja garantias de eternidade ou felicidade. E isto é tão verdade que tiveram que inventar dois juramentos para uniões religiosas "na alegria e na tristeza" e "até que a morte nos separe".

Sei que estou misturando as coisas, mas é que para mim elas estão juntas realmente.
Eternidade, assim como felicidade absoluta seriam a maior desgraça dos seres humanos, por mais estranho que isso possa parecer. Viver não teria o menor sentido.
É a finitude das coisas que lhes empresta "eternidade" e valor.
A maior dificuldade está em conseguir enxergar neste vazio a própria plenitude.

Em
"da eternidade das coisas findas" , uma postagem antiga, tentei expressar algumas idéias sobre o papel da morte como fundamental para o sentido da vida. Nela quis ressaltar o tempo como resultado da própria finitude dizendo que esta nos coloca diante de um futuro incerto e valioso. Também citei a ausência (morte) como constituinte da própria vida, já que penso que parte da personalidade se cria na tentativa de nos eternizarmos através de nossos feitos. E ao fim, incluí uma frase que, pra mim faz todo sentido neste (con)texto: "Eternos são aqueles que se sabem mortais!"

De lá pra cá me questionei algumas vezes sobre até que ponto essas afirmações eram mesmo válidas para mim. E de tanto pensar à respeito, percebi que minha própria vida estava sendo afetada por estas reflexões.
Tornar-se totalmente consciente da própria finitude é praticamente impossível. Freud já dizia que o inconsciente não "admite" o próprio fim. Mas, me aproximar destas questões me fizeram, aos poucos, rever minhas prioridades, valorizar minha vida e as pessoas que fazem parte dela, assim como desfazer-me de coisas que não me traziam nenhum benefício.
Não, não estou dizendo que resolvi todos os meus problemas. Mas ainda que fosse dolorido pensar nestas coisas, sem perceber, trouxe mais VIDA para minha vida.


"É quando ela, a mais carente de sentido,
dá sentido a todas as coisas.
A mais carente de vida,
dá vida a todas as coisas.
Afinal, não é preciso morrer
para nascer-se de novo."




por Sophia Compeagá



19 novembro 2008

da eternidade...

De Clarice Lispector

"Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim."