19 novembro 2008

da eternidade...

De Clarice Lispector

"Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim."

3 comentários:

Pod papo - Pod música disse...

Nossa mente humana é limitada a só aceitar o que tem começo, meio e fim. Não estamos acostumados com a idéia de eterno, por isso, o eterno nos assusta tanto. Mas eu acredito em eternidade sim!

Beijos!

DaniCabrera disse...

Rs...
Aqui vai um comentário que aprincípio não vai parecer ter saído de mim.
Eu acredito e não acredito.
Na verdade acredito numa eternidade condicional. Uma eternidade cultivada. Na verdade, na verdade da minha mente, só permanece aquilo que nós mesmos eternizamos, o que decidimos levar pra vida toda. Tudo bem que em certo ponto da vida possa vir um cansaço - como veio em Clarice depois que o doce do chicle acabou -,mas se houver mesmo a pré-disposição de vida-toda, a eternidade passa a não ser um peso, um fardo. Se o doce só, não for o motivo de "mascar um chicle eterno", se além do doce puder se encontrar algum outro fator que nos faça querer por hj, amanhã e até-o-fim...

Tenho medo de algumas eternidades, e por isso já estão decretadas a um dia de fim.

Mas eu tenho coisas que eu quero que me consumam até o meu último suspiro e depois...


Adoro Clarice, Sophia.
E adoro teu nome! : )

Beijos mocinha!

. fina flor . disse...

me deu saudade da minha irmã!!!

beijos, flor

MM.